Distante das tradicionais análises históricas que reduzem a imigração a um fenômeno meramente econômico, estudos recentes têm procurado lançar novas luzes sobre a condição daqueles que vivem em terras estrangeiras. Doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia, a pesquisadora Bernadete Beserra é autoridade quando o assunto é a imigração de brasileiros para o exterior. Autora do livro "Brazilian Immigrants in the United States: Cultural Imperialism and Social Class nos Estados Unidos" (lançado lá fora em 2003 e que ganha edição nacional como "Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos"), a professora da Faculdade de Educação da UFC fala ao Caderno 3 sobre os anseios e dramas de brasileiros que buscam construir uma nova vida em outros países. - Dellano Rios
- A migração do cearense já virou até motivo de piada ("encontra-se gente do Ceará em todos os lugares). O que leva esses cearenses a se fixarem em outros países? A questão financeira ainda é o fator principal?As pessoas migram por muitos motivos. No caso do sertão nordestino, em alguns momentos da história, a emigração se apresenta como uma questão de vida ou morte. Rodolfo Teófilo narra esta situação de obrigatoriedade da emigração no romance "A Fome", inspirado pela grande seca de 1877. Mas a emigração para outros países geralmente conjuga outros motivos. Inicialmente era uma migração de ricos, apenas, para estudar, iam se civilizar nos centros coloniais. Ou artistas para a conquista do "sul maravilha" ou Hollywood, etc. Nos últimos 20 anos, outras classes sociais também tem participado desses fluxos migratórios para o exterior. É mais fácil sobreviver como "classe média" trabalhando como babá em Nova Iorque ou Los Angeles, do que sendo professora em Fortaleza. Então, as pessoas arriscam. Além disto, no caso específico dos Estados Unidos, são quase 60 anos de domínio ideológico e cultural sobre quase todo o planeta... As pessoas aprendem desde cedo a sonhar em viver/conhecer tudo que Hollywood propagandeia nas suas telas... principalmente a parte boa, a do consumo sem limites.
- E o que pesa negativamente na hora de escolher um destino? A língua é o principal fator?
Embora a língua seja muito importante, não creio que, em geral, tenha um grande peso na decisão. Conheci muitos brasileiros nos Estados Unidos que mal sabiam dizer "thank you". Os sonhos que o indivíduo construiu sobre o destino são mais importantes... Geralmente sonhos baseados em economias dinâmicas que, hipoteticamente, os levariam à riqueza.
- O Brasil é um país que tem uma presença forte do elemento imigrante em sua formação. Não raras as vezes, os descendentes das gerações mais novas de imigrantes que chegaram por aqui, fazem o caminho inverso e vão aos lugares de onde vieram seus pais. O que explica esse "contrafluxo"?
Quem assistiu "Gaijin: Caminhos da Liberdade" (filme dirigido por Tizuka Yamasaki) sabe por que os descendentes de imigrantes sonham em voltar. Os imigrantes de primeira geração mantêm para sempre a sua terra de origem como referência. A terra que os "expulsou" se torna, às vezes, a própria "terra prometida". E eles acabam passando essa idéia para seus filhos. Há ainda uma certa curiosidade que todos temos de conhecer os mundos dos nossos ancestrais. É como se estivéssemos conhecendo um pouco mais sobre nós mesmos. Mas tal curiosidade é sempre mais forte quando o lugar dos ascendentes é também economicamente dinâmico. Não creio que as pessoas se sintam igualmente motivadas a buscar suas origens negras ou indígenas. A não ser agora, mais recentemente, com a ação afirmativa...
- Em países alguns países estrangeiros, os brasileiros optam por viver em colônias. Outros preferem se inserir nas comunidades nativas. O que determina esse comportamento?
Não sei se é simplesmente uma preferência. A integração na sociedade "anfitriã" depende de vários fatores, eu explico isto no meu livro "Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos", que estará sendo lançado no próximo mês. O país de origem, a classe social, a cor/raça do imigrante são fatores que interferem decisivamente na integração. A profissão também. Por exemplo, ser artista ou intelectual (acadêmico) amplia um pouco as possibilidades, mas no caso do serviço doméstico a integração é bem mais limitada. Voltando à questão da preferência e das colônias, elas facilitam a sobrevivência em função da língua e dos costumes, mas é também conseqüência da não aceitação dos nativos que os imigrantes se integrem como um deles.
- Lá fora, como os brasileiros confrontam o problema do racismo?
De forma semelhante à forma que confrontamos aqui mesmo. Nos Estados Unidos, que foi onde realizei minha pesquisa, não se enuncia tão claramente como aqui a raça ou etnia do outro: "japa", "negão", "índio", "paraíba", "baiano", etc. Parece que não se percebe estas diferenças, mas se percebe tanto que torna-se complicado sobreviver fora dos lugares próprios dos "latinos", "blacks" (negros) ou "brancos". Em todos os espaços, isto se reproduz: na universidade, nas artes e na distribuição de empregos. Quando morei em Los Angeles, me associei ao programa de ópera para os latinos, cujo presidente, na época, era o Placido Domingos.
- Quando falamos em imigração ilegal de brasileiros, normalmente, pensa-se no caso dos EUA. Há outros países onde as imigrantes de nosso país tentam penetra de forma semelhante? Em caso de resposta afirmativas, como é se dá a reação dessas nações e como é a vida dos brasileiros em seu solo?
Não conheço em profundidade a situação dos brasileiros em outros países, além dos Estados Unidos. Mas vimos, através do caso do brasileiro assassinado pela policia, em Londres, que não é fácil ser ilegal em lugar nenhum. Aqui no Brasil, por exemplo, temos o problema dos bolivianos em São Paulo, vivendo uma semi-escravidão, explorados pela indústria têxtil dominada pelos coreanos. Alguns estudiosos comparam a ilegalidade nos tempos de hoje com a escravidão. Eu acho que é uma situação até mais complicada, mas precisaria de mais espaço para aprofundar tal questão.
- A antropologia fala, positivamente, da sensação de estranhamento que se vivência, em sua própria comunidade, após o contato com outra realidade social. Para os migrantes comuns, quais as conseqüências desse estranhamento quando ele é reintroduzido na comunidade de onde saiu?
O imigrante que retorna, o viajante, vê o que nenhum nativo consegue ver: o mundo sob muitas perspectivas. É bom e é ruim. Aprendemos, por exemplo, que nenhum lugar é perfeito. Não nos contentamos mais tão facilmente. Passamos a viver meio no limbo. Mas é bom porque podemos também nos tornar mais tolerantes, mais compreensivos.
domingo, 20 de julho de 2008
EUA precisam de imigrantes ilegais para baixar salários (DN, 12 de junho de 2005)
Após a publicação do livro Brazilian Immigrants in the United States: Cultural Imperialism and Social Class nos Estados Unidos, em 2003, a pesquisadora Bernadete Beserra, 44 anos, passou a ser mais conhecida fora do País do que no Brasil. Professora da Faculdade de Educação da UFC, tem sido sistematicamente convidada para dar palestras em universidades americanas. Em março, proferiu a palestra de encerramento da conferência Brazilian Immigrants in the United States, promovida pela Universidade de Harvard. A versão em português do livro deve ser lançada em setembro pela Editora Hucitec em parceria com as Edições UFC. Para ela, doutora em Antropologia pela Universidade da Califórnia, a novela América, veiculada pela rede Globo, passa na tangente dos verdadeiros problemas enfrentados pelos brasileiros. Na avaliação da pesquisadora, a imigração ilegal ainda existe nos Estados Unidos devido à falta de um consenso entre a população sobre o assunto. Ela destaca que o problema favorece alguns setores, contribuindo para baixar os salários. Confira.
Marcus Peixoto
editoria de Reportagem
Marcus Peixoto: A senhora estudou a questão dos migrantes brasileiros nos Estados Unidos. É uma realidade muito diferente da apresentada pela novela América?
Bernadete Beserra Toda ficção tem que ter alguma referência na realidade. Na novela, vejo que a discriminação contra brasileiros não é colocada com a mesma clareza da vida real. A novela exagera em vários aspectos para se tornar dramática e para envolver os telespectadores. É assim que a ficção funciona. As novelas não têm o mesmo compromisso com a realidade que têm as ciências. Nesse sentido, os autores estão constantemente variando os ingredientes para mudar o enredo e envolver o público. Vamos começar pelo título, que já é bastante tendencioso: América. Por que designar os Estados Unidos como América, o nome do continente inteiro? Esta é uma questão muito polêmica e bastante questionada principalmente na América Latina. Então, eu acho que a autora já inicia pactuando com essa ideologia, segundo a qual os Estados Unidos é igual a América. Outro problema é que não coloca de uma forma mais realista a distância entre Brasil e Estados Unidos, especialmente na questão econômica.
— Você acha que a novela incentiva outros brasileiros a morar nos Estados Unidos?
Bernadete Beserra- Não tanto como alguns estudiosos estão afirmando. Mas influencia, claro. Alimenta uma idéia já bastante difundida: a de que a vida nos Estados Unidos é mais confortável e cheia de oportunidades do que a daqui, o que, em geral, também é verdade. A novela poderia ajudar a esclarecer questões simples como: os vistos são negados mais sistematicamente aos imigrantes de países do terceiro mundo. Não há, por exemplo, o mesmo problema quando o francês imigra para os Estados Unidos. Há alguns grupos que são mais discriminados. Atualmente, os asiáticos, latinos e africanos. Outro aspecto importante, também não eficientemente abordado, é o da dificuldade com a língua. A novela está longe de imitar a frustração que os brasileiros vivem nos Estados Unidos até dominarem o inglês. Miami tem as suas particularidades: 80% da população é composta por imigrantes latino-americanos, em sua maioria cubanos, e isto facilita muito a nossa integração, já que não há o choque imediato do inglês. Outro ponto que acho fundamental, e este eu acho que a autora da novela aborda bem, é a questão do sonho. Há também um aspecto econômico, das oportunidades que são maiores, além do ideológico, que é o da difusão do “American way of life”, no caso da migração de brasileiros para os Estados Unidos. Acho que o ideológico/cultural pesa muito mais. Embora, na verdade, estejam muito relacionados.
— A senhora tem afirmado que a imigração ilegal não tem sido combatida efetivamente. Por quê?
Bernadete Beserra- Vejamos a história da Sol, a personagem da novela, atravessando a fronteira do México. Foi difícil, sem dúvida, mas atravessou. Será que os Estados Unidos com toda a tecnologia que têm não poderiam fechar essas fronteiras? Claro que sim. Não fazem porque não há um consenso. E eles, principalmente os empresários, precisam da imigração ilegal porque baixa os salários. É por isso que muita gente se assusta quando conhece a posição dos partidos de esquerda em relação à migração. Em geral eles são os mais fervorosamente contrários à livre circulação de pessoas porque temem o impacto que isso teria sobre o mercado de trabalho. Sem falar na provável falência do estado de bem-estar social conquistado pelas populações desses países. E a forma que os nativos têm de lutar contra isso é se colocando contra a imigração. Se todos os imigrantes fossem automaticamente legalizados, haveria um crescimento absurdo do exército industrial de reserva e isto baixaria os salários radicalmente e aprofundaria os conflitos já existentes nessas sociedades. A ilegalidade não deixa de ser um controle sobre essa situação. Sou a favor da livre circulação de pessoas em todo o planeta. O nosso mundo deveria ser global não apenas para o capital, também para as pessoas.
— Na sua pesquisa, verificou-se um ganho de qualidade de vida dos imigrantes, ou levam uma vida com menos oportunidades do que levariam no Brasil?
Bernadete Beserra- No meu trabalho, mostro que as alternativas dos brasileiros nos Estados Unidos estão muitos ligadas com as próprias alternativas deles no Brasil. As oportunidades são relacionadas muito às classes sociais. Agora, se você me pergunta, do ponto de vista material, do conforto, a vida nos Estados Unidos é mais confortável do que no Brasil? Sim. Eles produziram uma tecnologia de conforto que está muito longe da nossa realidade. Muitos brasileiros, com o mesmo tipo de emprego que têm lá, jamais conseguiriam comprar um carro aqui. E lá eles conseguem o carro e se encantam com isso. Há também outros fatores a se considerar: a língua, a religião, enfim, é uma cultura diferente da nossa e existe muito mais a se considerar além do conforto material.
— Como a discriminação racial manifesta-se contra esses grupos de imigrantes?
Bernadete Beserra- Em geral manifesta-se da mesma forma que aqui. A diferença é que os americanos são mais sutis, mais polidos e desenvolveram bastante bem a instituição da indiferença. Por exemplo, ao invés de torcer o nariz quando se encontra com alguém mais pobre, mais escuro ou mais feio, eles se comportam como se o outro não existisse. Eles fazem isto tão bem que, em alguns casos, eu mesma cheguei a duvidar da minha materialidade. Será que eu havia desencarnado sem perceber? O resto é muito semelhante. O preconceito e a discriminação que há contra os latinos, e lá os brasileiros são classificados como latinos, são semelhantes àqueles que há contra nordestino no Rio, São Paulo e outros Estados do Sul/Sudeste. Então, não importa quão importante você é aqui no Brasil, chegando aos Estados Unidos há uma desvalorização quase automática. Ou seja, seja lá o que você tenha, ou seja, você sempre será um latino num país de hegemonia anglo-saxônica.
— Esse racismo chega a ser opressivo ou sofreu alterações ao longo dessas décadas?
Bernadete Beserra- Toda discriminação ou racismo é opressivo. Pode ser mais sutil ou mais aberto. Quando você chega em São Paulo e fala com o seu sotaque nordestino e as pessoas lhe olham diminuindo, é desconfortável, né? A mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Pode ser mais violento, mais agressivo ou mais passional, mas é sempre ruim. Desde 2000, estou estudando as relações raciais em Fortaleza, a partir do caso dos alunos dos Cursos de Pedagogia e Educação Física da UFC. Vejo que há diferenças entre a forma como as pessoas se identificavam em 2001, 2002 e 2003 e agora. Quando antes eu perguntava quem era negro, ninguém levantava a mão. Agora muitos já têm a coragem de levantar. Afinal, a negritude não está mais somente relacionada a coisas negativas, como historicamente tem sido. Ou seja, hoje já há alguma vantagem em se assumir negro.
— O que o 11 de Setembro alterou na questão do preconceito e das diferenças raciais nos Estados Unidos?
Bernadete Beserra- O 11 de Setembro talvez tenha radicalizado uma situação que já existia, a da discriminação de certos grupos de imigrantes. A data, simplificadamente, agravou a discriminação contra um grupo específico de imigrantes, os árabes, ou uma parte do mundo árabe: os muçulmanos. Outros grupos foram atingidos porque o esquema de segurança montado a partir de então atinge a todos. Mas a imprensa difundiu o pavor a este grupo específico, então a vida daqueles que se assemelham físico ou culturalmente aos muçulmanos tornou-se muito mais difícil. Criou-se uma relação e um estigma. E um medo generalizado de imigrantes. Claro, ficou pior para todo mundo.
— Pesquisa de opinião realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2003 mostrou que 87% dos brasileiros acreditam que há racismo no Brasil. Curiosamente, somente 4% dos entrevistados reconhecem que são racistas. Existe racismo sem racistas?
Bernadete Beserra- Claro que não. Todas as pessoas socializadas numa sociedade racista são racistas. Eu sempre digo que o problema não é ser racista, mas, uma vez consciente disto, continuar racista e defender o racismo. Aqui no Brasil é interessante porque o mito da democracia racial nos convenceu de que não somos racistas; os americanos é que são. Racista é quem é segregacionista, ou seja, os americanos e os sul-africanos. E é claro que o racismo segregacionista é apenas uma expressão do racismo. O nosso se expressa de forma diferente. Eu geralmente faço essa pergunta aos meus alunos e eles não se vêem como racistas. Ficam horrorizados com tal possibilidade. Mas aí começamos a observar a discriminação que há contra os mais escuros no Brasil e todos acabam reconhecendo muitas das suas atitudes como racistas. Esse reconhecimento é o primeiro passo para uma mudança no comportamento...
— Até que ponto a miscigenação foi positiva para o Brasil?
Bernadete Beserra- A miscigenação é sempre positiva. As ideologias coloniais, principalmente as produzidas pelos anglo-saxões, criaram o mito de que a mestiçagem é algo negativo. A Ciência já provou que não é verdade que a mestiçagem produz limitações intelectuais ou morais, como se acreditava no tempo do Conde de Gobineau, no final do Século XIX e início do Século XX. Isso já foi superado.
— Qual sua avaliação sobre os movimentos em torno das Ações Afirmativas?
Bernadete Beserra- Em geral, acho muito positivo. Acho bom que discutamos abertamente as relações raciais no Brasil. O silêncio que mantivemos sobre o assunto não beneficiou em nada os que sofrem as suas conseqüências. Vejo no Brasil as coisas acontecendo ao contrário. Somente depois que o governo decidiu implementar o Programa de Ações Afirmativas é que o País se deu conta de que era racista. Por que essa discussão não aconteceu antes? Em princípio, sou a favor das cotas, acho interessante a idéia da compensação de perdas produzidas historicamente pela discriminação. O problema do Brasil é definir quem é negro, ou seja, quem vai ser beneficiário. Os mais discriminados provavelmente fiscalizarão o processo, não sei. Só sei que a morenidade em si não é um problema no Brasil, muito pelo contrário. A discriminação é sempre contra os mais escuros e um conjunto de outras características
Marcus Peixoto
editoria de Reportagem
Marcus Peixoto: A senhora estudou a questão dos migrantes brasileiros nos Estados Unidos. É uma realidade muito diferente da apresentada pela novela América?
Bernadete Beserra Toda ficção tem que ter alguma referência na realidade. Na novela, vejo que a discriminação contra brasileiros não é colocada com a mesma clareza da vida real. A novela exagera em vários aspectos para se tornar dramática e para envolver os telespectadores. É assim que a ficção funciona. As novelas não têm o mesmo compromisso com a realidade que têm as ciências. Nesse sentido, os autores estão constantemente variando os ingredientes para mudar o enredo e envolver o público. Vamos começar pelo título, que já é bastante tendencioso: América. Por que designar os Estados Unidos como América, o nome do continente inteiro? Esta é uma questão muito polêmica e bastante questionada principalmente na América Latina. Então, eu acho que a autora já inicia pactuando com essa ideologia, segundo a qual os Estados Unidos é igual a América. Outro problema é que não coloca de uma forma mais realista a distância entre Brasil e Estados Unidos, especialmente na questão econômica.
— Você acha que a novela incentiva outros brasileiros a morar nos Estados Unidos?
Bernadete Beserra- Não tanto como alguns estudiosos estão afirmando. Mas influencia, claro. Alimenta uma idéia já bastante difundida: a de que a vida nos Estados Unidos é mais confortável e cheia de oportunidades do que a daqui, o que, em geral, também é verdade. A novela poderia ajudar a esclarecer questões simples como: os vistos são negados mais sistematicamente aos imigrantes de países do terceiro mundo. Não há, por exemplo, o mesmo problema quando o francês imigra para os Estados Unidos. Há alguns grupos que são mais discriminados. Atualmente, os asiáticos, latinos e africanos. Outro aspecto importante, também não eficientemente abordado, é o da dificuldade com a língua. A novela está longe de imitar a frustração que os brasileiros vivem nos Estados Unidos até dominarem o inglês. Miami tem as suas particularidades: 80% da população é composta por imigrantes latino-americanos, em sua maioria cubanos, e isto facilita muito a nossa integração, já que não há o choque imediato do inglês. Outro ponto que acho fundamental, e este eu acho que a autora da novela aborda bem, é a questão do sonho. Há também um aspecto econômico, das oportunidades que são maiores, além do ideológico, que é o da difusão do “American way of life”, no caso da migração de brasileiros para os Estados Unidos. Acho que o ideológico/cultural pesa muito mais. Embora, na verdade, estejam muito relacionados.
— A senhora tem afirmado que a imigração ilegal não tem sido combatida efetivamente. Por quê?
Bernadete Beserra- Vejamos a história da Sol, a personagem da novela, atravessando a fronteira do México. Foi difícil, sem dúvida, mas atravessou. Será que os Estados Unidos com toda a tecnologia que têm não poderiam fechar essas fronteiras? Claro que sim. Não fazem porque não há um consenso. E eles, principalmente os empresários, precisam da imigração ilegal porque baixa os salários. É por isso que muita gente se assusta quando conhece a posição dos partidos de esquerda em relação à migração. Em geral eles são os mais fervorosamente contrários à livre circulação de pessoas porque temem o impacto que isso teria sobre o mercado de trabalho. Sem falar na provável falência do estado de bem-estar social conquistado pelas populações desses países. E a forma que os nativos têm de lutar contra isso é se colocando contra a imigração. Se todos os imigrantes fossem automaticamente legalizados, haveria um crescimento absurdo do exército industrial de reserva e isto baixaria os salários radicalmente e aprofundaria os conflitos já existentes nessas sociedades. A ilegalidade não deixa de ser um controle sobre essa situação. Sou a favor da livre circulação de pessoas em todo o planeta. O nosso mundo deveria ser global não apenas para o capital, também para as pessoas.
— Na sua pesquisa, verificou-se um ganho de qualidade de vida dos imigrantes, ou levam uma vida com menos oportunidades do que levariam no Brasil?
Bernadete Beserra- No meu trabalho, mostro que as alternativas dos brasileiros nos Estados Unidos estão muitos ligadas com as próprias alternativas deles no Brasil. As oportunidades são relacionadas muito às classes sociais. Agora, se você me pergunta, do ponto de vista material, do conforto, a vida nos Estados Unidos é mais confortável do que no Brasil? Sim. Eles produziram uma tecnologia de conforto que está muito longe da nossa realidade. Muitos brasileiros, com o mesmo tipo de emprego que têm lá, jamais conseguiriam comprar um carro aqui. E lá eles conseguem o carro e se encantam com isso. Há também outros fatores a se considerar: a língua, a religião, enfim, é uma cultura diferente da nossa e existe muito mais a se considerar além do conforto material.
— Como a discriminação racial manifesta-se contra esses grupos de imigrantes?
Bernadete Beserra- Em geral manifesta-se da mesma forma que aqui. A diferença é que os americanos são mais sutis, mais polidos e desenvolveram bastante bem a instituição da indiferença. Por exemplo, ao invés de torcer o nariz quando se encontra com alguém mais pobre, mais escuro ou mais feio, eles se comportam como se o outro não existisse. Eles fazem isto tão bem que, em alguns casos, eu mesma cheguei a duvidar da minha materialidade. Será que eu havia desencarnado sem perceber? O resto é muito semelhante. O preconceito e a discriminação que há contra os latinos, e lá os brasileiros são classificados como latinos, são semelhantes àqueles que há contra nordestino no Rio, São Paulo e outros Estados do Sul/Sudeste. Então, não importa quão importante você é aqui no Brasil, chegando aos Estados Unidos há uma desvalorização quase automática. Ou seja, seja lá o que você tenha, ou seja, você sempre será um latino num país de hegemonia anglo-saxônica.
— Esse racismo chega a ser opressivo ou sofreu alterações ao longo dessas décadas?
Bernadete Beserra- Toda discriminação ou racismo é opressivo. Pode ser mais sutil ou mais aberto. Quando você chega em São Paulo e fala com o seu sotaque nordestino e as pessoas lhe olham diminuindo, é desconfortável, né? A mesma coisa em qualquer lugar do mundo. Pode ser mais violento, mais agressivo ou mais passional, mas é sempre ruim. Desde 2000, estou estudando as relações raciais em Fortaleza, a partir do caso dos alunos dos Cursos de Pedagogia e Educação Física da UFC. Vejo que há diferenças entre a forma como as pessoas se identificavam em 2001, 2002 e 2003 e agora. Quando antes eu perguntava quem era negro, ninguém levantava a mão. Agora muitos já têm a coragem de levantar. Afinal, a negritude não está mais somente relacionada a coisas negativas, como historicamente tem sido. Ou seja, hoje já há alguma vantagem em se assumir negro.
— O que o 11 de Setembro alterou na questão do preconceito e das diferenças raciais nos Estados Unidos?
Bernadete Beserra- O 11 de Setembro talvez tenha radicalizado uma situação que já existia, a da discriminação de certos grupos de imigrantes. A data, simplificadamente, agravou a discriminação contra um grupo específico de imigrantes, os árabes, ou uma parte do mundo árabe: os muçulmanos. Outros grupos foram atingidos porque o esquema de segurança montado a partir de então atinge a todos. Mas a imprensa difundiu o pavor a este grupo específico, então a vida daqueles que se assemelham físico ou culturalmente aos muçulmanos tornou-se muito mais difícil. Criou-se uma relação e um estigma. E um medo generalizado de imigrantes. Claro, ficou pior para todo mundo.
— Pesquisa de opinião realizada pela Fundação Perseu Abramo em 2003 mostrou que 87% dos brasileiros acreditam que há racismo no Brasil. Curiosamente, somente 4% dos entrevistados reconhecem que são racistas. Existe racismo sem racistas?
Bernadete Beserra- Claro que não. Todas as pessoas socializadas numa sociedade racista são racistas. Eu sempre digo que o problema não é ser racista, mas, uma vez consciente disto, continuar racista e defender o racismo. Aqui no Brasil é interessante porque o mito da democracia racial nos convenceu de que não somos racistas; os americanos é que são. Racista é quem é segregacionista, ou seja, os americanos e os sul-africanos. E é claro que o racismo segregacionista é apenas uma expressão do racismo. O nosso se expressa de forma diferente. Eu geralmente faço essa pergunta aos meus alunos e eles não se vêem como racistas. Ficam horrorizados com tal possibilidade. Mas aí começamos a observar a discriminação que há contra os mais escuros no Brasil e todos acabam reconhecendo muitas das suas atitudes como racistas. Esse reconhecimento é o primeiro passo para uma mudança no comportamento...
— Até que ponto a miscigenação foi positiva para o Brasil?
Bernadete Beserra- A miscigenação é sempre positiva. As ideologias coloniais, principalmente as produzidas pelos anglo-saxões, criaram o mito de que a mestiçagem é algo negativo. A Ciência já provou que não é verdade que a mestiçagem produz limitações intelectuais ou morais, como se acreditava no tempo do Conde de Gobineau, no final do Século XIX e início do Século XX. Isso já foi superado.
— Qual sua avaliação sobre os movimentos em torno das Ações Afirmativas?
Bernadete Beserra- Em geral, acho muito positivo. Acho bom que discutamos abertamente as relações raciais no Brasil. O silêncio que mantivemos sobre o assunto não beneficiou em nada os que sofrem as suas conseqüências. Vejo no Brasil as coisas acontecendo ao contrário. Somente depois que o governo decidiu implementar o Programa de Ações Afirmativas é que o País se deu conta de que era racista. Por que essa discussão não aconteceu antes? Em princípio, sou a favor das cotas, acho interessante a idéia da compensação de perdas produzidas historicamente pela discriminação. O problema do Brasil é definir quem é negro, ou seja, quem vai ser beneficiário. Os mais discriminados provavelmente fiscalizarão o processo, não sei. Só sei que a morenidade em si não é um problema no Brasil, muito pelo contrário. A discriminação é sempre contra os mais escuros e um conjunto de outras características
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