Entrevista a Érica Azevedo, jornal O Povo, )
- Já sabemos que o livro partiu de uma tese de doutorado sua (em que área?). E a idéia de transformar essa tese numa narrativa em primeira pessoa, uma leitura decerto mais suave para o público em geral, estava nos seus planos?
Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e Outros Sonhos é uma versão revisada da minha tese de doutorado em Antropologia, na Universidade da Califórnia, Riverside. Também mudei o título, que era, originalmente, Brazilians in Los Angeles: Immigration, Imperialism and Social Class [Brasileiros em Los Angeles: Imigração, Imperialismo e Classe]. Na verdade, a narrativa em primeira pessoa é original. É uma tradição da Antropologia. Mais o texto claro, ao qual o meu editor se refere na orelha do livro, é uma característica da minha escrita, independentemente de eu estar escrevendo poemas, artigos para jornais ou artigos científicos.
- Em que ano o livro foi lançado nos EUA? Como foi a repercussão?
A história deste livro é engraçada. Logo após a defesa da tese, em março de 2000, eu voltei ao Brasil, para reassumir a minha função de professora da Faculdade de Educação da UFC. Foi um período muito difícil: eu estava me divorciando e tanto eu como meus filhos estávamos tendo muitas dificuldades na readaptação a Fortaleza. Na defesa da tese, o meu orientador, Michael Kearney, propôs-me escrever um pequeno texto de apresentação do manuscrito, que ele encaminhar às editoras com que ele tinha alguma relação. Mas eu estava tão desestimulada na minha volta e achando tudo tão complicado e difícil que nunca escrevi o que ele pediu. De certo modo, mas meio irracionalmente, eu atribuía aquelas dificuldades de readaptação à nossa “americanização”. Então, tudo que eu mais queria naqueles primeiros meses era esquecer toda a minha história em Los Angeles, inclusive a tese, que eu tivera a oportunidade de apresentar em várias palestras e conferências antes de voltar. Aqui, no Brasil, tentei me articular com outros estudiosos da imigração brasileira nos Estados Unidos, mas não fui muito feliz. Resolvi desistir do tema e comecei a pesquisar outras coisas: turismo e imigração no Ceará, racismo na escola, etc. Em fevereiro de 2002, recebi um email de Leo Balk, o editor que produziu meu livro nos Estados Unidos. Ele me pedia permissão para submeter o meu manuscrito aos seus pareceristas. Concordei. Uns seis meses depois, ele me enviou o parecer, favorável, e um contrato de publicação. Os pareceristas me pediram para reduzir umas 60-80 páginas e atualizar alguns dados. Um ano depois o livro já estava no catálogo da LFB Scholarly Publishing e na amazon.com, a maior livraria virtual do planeta. Era uma edição cara, custava 65 dólares e se destinava, como eu disse, às bibliotecas. Apesar disto, imediatamente comecei a ser convidada para dar palestras em conferências que discutiam imigrantes nos Estados Unidos. Fui para São Domingos, em 2003. Los Angeles e Miami em 2004. Mas acho que foi a minha participação como conferencista na I Conferência Nacional sobre Brasileiros nos Estados Unidos, promovida pela Universidade de Harvard, em março do ano passado, que tornou o meu trabalho mais conhecido de um maior número de estudiosos da área. Como o livro gerou certa demanda pela minha interpretação do fenômeno, decidi concorrer a uma bolsa de pós-doutorado e estou indo, agora, em agosto próximo para uma temporada de um ano de estudos bibliográficos e pesquisas em Chicago. Em síntese, a publicação teve bastante consequências positivas.
- No Brasil este é o primeiro lançamento? Quais suas expectativas para este lançamento? Qual o roteiro para o lançamento do livro em outras capitais?
Fortaleza é o primeiro lançamento. A minha expectativa é bastante otimista. É muito bom poder ter uma edição em português. É bom que os meus alunos e colegas possam conhecer este estudo. Para mim, é como se o livro estivesse sendo finalmente publicado. A edição em inglês parecia não fazer parte deste mundo. Já recebi comentários de leitores brasileiros. São também bastante favoráveis. Recebi, na semana passada, uma resenha escrita pelo professor Sérgio Schaefer, da UNISC, Rio Grande do Sul. Infelizmente, em função da minha viagem próxima para Chicago, somente vou lançar o livro em João Pessoa, na Paraíba, meu estado natal, e em Brasília. Mas, considerando que as outras duas editoras parceiras da publicação estão localizadas em São Paulo e Santa Cruz do Sul, não creio que haverá dificuldades maiores de divulgação e distribuição.
- É impossível ler a resenha do seu livro e não lembrar da novela da Glória Perez, América, exibida pela Rede Globo em 2005. Como a senhora avalia a perspectiva dada ao tema no folhetim em relação à sua obra?
Eu acho que a maior diferença é a das características de cada uma das obras: a dela, de ficção e a minha, acadêmica, científica. Mas há outras diferenças: o meu é um trabalho mais crítico e o dela mais ideológico, começando pelo título. Ela confirma no título América a pretensão dos estadunidenses de senhores do continente inteiro, afinal, são os únicos que se nomeiam pelo nome do continente, enquanto nós, os outros, somos brasileiros, argentinos, etc. Ela poderia criar uma ficção mais próxima da realidade, mas acho que ela preferiu optar pela alimentação dos estereótipos o que, afinal, é uma solução mais fácil e, claro, também revela os limites do seu conhecimento da realidade da integração imigrante brasileira nos Estados Unidos.
- Os imigrantes brasileiros nos EUA lendo o seu livro têm uma ótica bem próxima à realidade deles. Brasileiros que voltaram de lá, lendo o seu livro têm uma ótica que os lembra momentos vividos no estrangeiro. E para os brasileiros que querem morar nos EUA, que expectativa teriam lendo a narrativa?
Na verdade, a realidade que o meu estudo abrange é muito particular. É a do sul da Califórnia, grande Los Angeles, região onde a população de imigrantes brasileiros é muito pequena, especialmente quando comparada a Nova Iorque, Boston e Miami, que concentram aproximadamente 80% desse fluxo migratório. Por exemplo, em 5 anos vivendo na grande Los Angeles foi apenas uma ou outra vez que ouvi casualmente pessoas falando em português. Agora, em março, que fiquei como professora visitante na Universidade de Bryant e me hospedei em Framingham, cidade da grande Boston que tem umas das maiores populações de brasileiros nos Estados Unidos, ouvia o português constantemente e não apenas em vizinhanças brasileiras, em todo lugar! Nos shoppings, restaurantes, supermercados. É uma experiência completamente diferente da de Los Angeles.
- Mesmo com todas as dificuldades que ainda existem em atravessar a fronteira dos EUA ilegalmente, por que mais e mais imigrantes ainda se arriscam na aventura?
Há várias razões, acho que as mais importantes são a nossa economia em crise e a atração pelo sonho do paraíso americano construído pela indústria cinematográfica de Hollywood. Do mesmo modo que todos os muçulmano sonham com Meca, todos os habitantes do planeta submetidos ao imperialismo cultural americano sonham, para o bem ou para o mal, com os Estados Unidos. É o centro do mundo depois da II Guerra Mundial. Eu argumento, no meu estudo, que a migração brasileira para os Estados Unidos hoje não se coloca no mesmo nível de necessidade que a migração sertaneja para Fortaleza no final do século XIX. Ou seja, migrar para os Estados Unidos não é uma questão de vida ou morte. As pessoas se arriscam porque se concentram mais nas histórias de sucesso que nas de fracasso. Acreditam que com a migração podem mudar sua vida mais facilmente do que se permanecessem no Brasil... Os próprios imigrantes brasileiros ajudam a alimentar tal visão independentemente de suas condições de vida. Contam somente o lado bom porque isto adiciona mais valor às suas experiências. Alimentam, assim, o colonialismo, o racismo e todas as ideologias da desigualdade.
- Na sua visão, por que tais aventureiros não arriscam "vencer na vida" aqui mesmo no próprio País? Que tão melhores chances existem em se aventurar numa terra desconhecida onde, praticamente, não se é bem vindo?
As pessoas preferem migrar porque é mais simples transformar apenas o rumo da própria vida do que o de uma sociedade inteira. Se o desejo de superar uma certa posição social ou familiar é muito forte e não pode se realizar na família, cidade ou país de origem, restam, além da emigração, o crime e o suicídio como alternativas. Por outro lado, os Estados Unidos não são exatamente o que podemos chamar de uma terra “desconhecida”. Ao contrário, sabemos mais sobre Los Angeles do que sobre Porto Alegre. Além disto, quem é benvindo e onde? Foram benvindos os sertanejos em Fortaleza? Os nordestinos em São Paulo ou Rio de Janeiro?
- Está em votação na Câmara dos Representantes nos EUA, um projeto de lei para regularizar os 12 milhões de cidadãos ilegais existentes do país. Quais as principais mudanças que a aprovação desta lei traria para os imigrantes ilegais nos EUA? Comente um pouco sobre esta possível novidade para os futuros imigrantes que desejem aportar no país.
Na verdade, o projeto de lei recentemente votado no Senado não tem como propósito a regularização da situação dos imigrantes ilegais. É mais abrangente e pretende, ao contrário, controlar mais eficazmente a imigração “indesejada.” Inclusive, no que se refere especificamente à situação dos imigrantes ilegais há grande discordância entre os projetos apresentados pela Câmara e pelo Senado, sendo o deste mais simpático à situação dos imigrantes ilegais, provavelmente já pressionado pelas manifestações do 1. de Maio contra o projeto proposto pela Câmara. Mesmo o projeto do Senado não propõe a legalização de todos os imigrantes ilegais. Eles serão classificados e diferentemente tratados em função do tempo de imigração. Por exemplo, a proposta de lei do Senado quer que todos os imigrantes ilegais que estão no país há menos de dois anos sejam imediatamente deportados. Os que estão além de cinco anos poderão ser anistiados e aqueles entre 2 e 5 anos terão seus casos tratados individualmente. Não é simples o problema e nem a solução. É possível, porém, que nem com a solução proposta pelo Senado todos concordem. Os ânimos anti-imigrantes, especialmente, anti-latinos estão muito fortes. Por outro lado, os latinos surpreenderam e mostraram sua força nas manifestações do 1. de Maio. Quanto aos potenciais imigrantes, é óbvio que o controle sobre a imigração ilegal tornar-se-à cada vez mais efetivo. Ou seja, a travessia ilegal tornar-se-à cada vez mais difícil.
- Uma mensagem para os futuros leitores. Se o que está na pauta é o desejo de migrar, acho que vale a pena conhecer a variedade de possibilidades que há. A experiência de transformação que a imigração desencadeia não se restringe à migração para os Estados Unidos. A possibilidade de sucesso financeiro não é também apenas oferecida pelos Estados Unidos... Ou seja, acho que os potenciais imigrantes devem avaliar com cuidado os riscos (custos) e benefícios das várias escolhas possíveis. Difícil é encontrar informação sobre o Sri Lanka no cinema hollywoodiano!
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
sábado, 20 de setembro de 2008
A vida longe de casa
William Costa para o Norte, 13 de julho de 2006)(Livro da antropóloga Bernadete Beserra revela o drama dos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos. William costa Editor do Show. williamcosta@jornalonorte.com.br)
A questão da emigração de brasileiros rumo aos Estados Unidos é um problema social dos mais graves na história contemporânea dos dois países. Cativados pelo sonho de prosperidade econômica, centenas de patrícios colocam a vida em jogo tentando burlar os rígidos e sofisticados sistemas de controle de imigração estadunidense, principalmente após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Poucos são os que conseguem, se comparado com as muitas mortes, prisões e deportações. Mas a persistência é contínua, e o caldo literário e sociológico engrossa de tanto condimento trágico.O assunto seduziu e comoveu a antropóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Bernadete Beserra, transformando-se em tema do livro Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos.
A obra foi publicada, inicialmente, nos Estados Unidos, onde despertou interesse por seu caráter pioneiro, e, hoje, será lançado, às 19h, na Fundação Casa de José Américo, na avenida Cabo Branco, 3336, com a presença do editor das Edições UFC, Luiz Falcão Lordelo. A autora e sua obra serão apresentados pelos professores Maria Cristina de Melo Marin e Fábio Henrique Souza.Brasileiros nos Estados Unidos é considerado um livro inovador, especificamente por ser um dos raros trabalhos produzidos por brasileiros que estudam outros países.
No livro, Bernadete apresenta um estudo original da imigração brasileira nos Estados Unidos, trazendo à lume conexões entre os fluxos migratórios e a expansão imperialista americana no Brasil. A partir de pesquisa etnográfica realizada com brasileiros residentes em Los Angeles, ela revela que é o contato direto ou indireto com a cultura americana que cria o sonho, ou melhor, a necessidade de viver nos Estados Unidos.A tese principal do livro, segundo Bernadete, é a de que os brasileiros, assim como outros cidadãos de nacionalidades diversas, migram para os Estados Unidos em conseqüência da aculturação produzida pela expansão do imperialismo americano no Brasil e no mundo. A autora alerta, no entanto, que esta não é uma conseqüência apenas abstrata."
A expansão do imperialismo exige a criação de redes efetivas entre os Estados Unidos e os outros países. No meu livro, eu estudo as redes produzidas pela expansão do adventismo do sétimo dia no Brasil e o fluxo migratório para os Estados Unidos decorrentes disto", acrescenta.Outro fator muito importante explorado pela autora diz respeito à instituição do casamento de americanos com brasileiras, o que ela chama de "imperialismo científico", caso daqueles, como ela mesma, que vão buscar qualificação e, finalmente, o caso de Hollywood, provavelmente um dos mais efetivos no sentido de difusão do American way of life.
"A minha tese, portanto, afirma que é o contato direto ou indireto com a cultura americana que cria o sonho ou a necessidade de migração e não apenas a crise econômica brasileira ou necessidades exclusivamente econômicas do imigrante", completa.O fato preponderante que levou Bernadete a se interessar pela questão da emigração de brasileiros para os Estados Unidos foi a sua própria experiência de estudante de doutorado que a levou a indagar sobre as dificuldades gerais da integração imigrante brasileira naquele país. "No início é um sofrimento muito grande, a exemplo da língua que não dominamos, e mil outros aspectos de um modo de vida diferente do nosso que precisamos aprender. A atração/rejeição inicial é muito grande. Então, tudo isto era tema de conversa constante na minha família e entre amigos do Brasil e de outros países", esclarece.
Bernadete revela que foi relativamente fácil eliminar os rigores do texto acadêmico para tornar o livro acessível ao público leigo, pois, em geral, escreve com facilidade. Ela está acostumada ao público de jornais porque escreve crônicas ou ensaios políticos eventuais para o jornal O Povo e outros periódicos. "É possível que aqui e ali o leitor leigo tenha alguma dificuldade. Por exemplo, quando explico a economia política da migração e integração imigrante no mundo de hoje. Mas já tenho vários exemplos de pessoas que não têm nada a ver com a área e que leram e entenderam tudo muito bem", diz.
Outro artifício narrativo utilizado por Bernadete para tornar atrativa a leitura de Brasileiros nos Estados Unidos pelo público menos familiarizado com o texto acadêmico foi excluir as partes que ela considera "mais chatas" de demonstração de algumas teorias que propõe e desenvolve ao longo de sua tese. "Trata-se de material obrigatório numa tese de doutorado - prossegue -, mas completamente desnecessário para um livro que eu pretendia que circulasse com uma amplitude maior e que ajudasse a divulgar uma perspectiva menos de senso comum sobre o assunto".
Artigos e ensaios de estudiosos da migração em massa para os Estados Unidos dão conta de que o empresariado estadunidense apóia a imigração ilegal, pois, assim, teria acesso à uma mão-de-obra mais barata. Na contramão desse pensamento, Bernadete diz que o empresariado americano - carente do tipo de mão-de-obra ofertada pelo imigrante - se submete a conviver e lançar mão da mão-de-obra de trabalhadores "ilegais" porque não há um programa ou lei de imigração que permita que entre trabalhadores no país na quantidade demandada pelo mercado de trabalho. "Só neste sentido eles a apóiam", destaca.
Bernadete diz que há muitas formas de entrar nos Estados Unidos sem documentos, como a novela "América" (exibida pela Rede Globo) mostrou: através dos coyotes e cruzando o deserto e o Rio Grande (que separa o México dos Estados Unidos) ou dos balseiros via Caribe."Mas, entre os brasileiros que estudei, o mais comum era entrar com visto e continuar lá depois do visto expirado. Um caso interessante é o dos descendentes de italianos que têm direito à cidadania italiana e entram nos Estados Unidos com passaporte da comunidade européia", comenta.
As dificuldades enfrentadas pelos sul-americanos para encontrar aceitação social no novo país, na opinião da antropóloga, são imensas. Ela ressalta que a sociedade industrial, capitalista, urbana, dos Estados Unidos, da França ou do Brasil, desenvolveu forte preconceito por tudo que não é urbano, rico e moderno. "Assim, há um preconceito geral, tanto lá quanto aqui, contra tudo que é pobre, subdesenvolvido e atrasado. E é assim que tanto o Brasil quanto toda a América Latina são classificados. É o caso da visão do Nordeste pelo Sudeste aqui, no Brasil", compara.
De um ponto de vista predominante, Bernadete diz que os brasileiros sãos vistos como inferiores, inclusive pelo fato de também serem mestiços, uma vez que a ideologia racial dominante nos Estados Unidos, apesar de todo um trabalho desenvolvido por organizações não-governamentais em nível mundial, é a da pureza racial, fato que, na análise da autora de Brasileiros nos Estados Unidos, se contrapõe à excessiva valorização da raça branca, de origem anglo-saxônica."Então, em geral, comparo o preconceito contra o latino nos Estados Unidos com o exercido contra nordestino no Brasil. É semelhante", enfatiza.
Enfrentar questões como a enorme saudade que os imigrantes sentem do Brasil, agravada pelo rompimento das relações familiares e de amizade e pelas conseqüências do profundo choque cultural, na opinião da antropóloga, depende muito da classe social de que são oriundos aqui no Brasil e de como se integram às esferas sociais dos Estados Unidos. Ela explica que alguns brasileiros, principalmente os mais pobres, sonham a vida inteira em voltar para o Brasil, mas não o Brasil real, que eles deixaram, mas um Brasil fictício que eles constróem para sobreviverem.
No caso particular de Bernadete, a maior dificuldade foi sobreviver sem falar fluentemente o inglês, no início. Ela lembra que sofria demais por não poder se expressar com a mesma fluência com que se expressa na língua materna. O forte senso de individualidade e privacidade do americano também a assustou. "Sentimo-nos rejeitados, até entendermos que é assim que eles funcionam. Senti falta do contato que temos aqui, onde falamos com o outro tocando. Da nossa paquera cotidiana também. Depois vamos descobrindo as várias formas como eles também paqueram e como demonstram as suas emoções", confessa.
Morar nos Estados Unidos foi uma das experiências mais radicais que Bernadete experimentou, embora tenha adorado ter aprendido a sobreviver numa cultura tão diferente. E não apenas pelo idioma, como também pela cultura protestante-calvinista que, segundo ela, ensina a assumir responsabilidade pelo que se faz e não transferir toda a responsabilidade para Deus ou para os governantes. "Descobri que há aspectos da cultura americana, como a pontualidade e a ética do trabalho, que prefiro à impontualidade brasileira e ao desrespeito e exploração selvagem do trabalho no Brasil", conclui.
A questão da emigração de brasileiros rumo aos Estados Unidos é um problema social dos mais graves na história contemporânea dos dois países. Cativados pelo sonho de prosperidade econômica, centenas de patrícios colocam a vida em jogo tentando burlar os rígidos e sofisticados sistemas de controle de imigração estadunidense, principalmente após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001. Poucos são os que conseguem, se comparado com as muitas mortes, prisões e deportações. Mas a persistência é contínua, e o caldo literário e sociológico engrossa de tanto condimento trágico.O assunto seduziu e comoveu a antropóloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC), Bernadete Beserra, transformando-se em tema do livro Brasileiros nos Estados Unidos: Hollywood e outros sonhos.
A obra foi publicada, inicialmente, nos Estados Unidos, onde despertou interesse por seu caráter pioneiro, e, hoje, será lançado, às 19h, na Fundação Casa de José Américo, na avenida Cabo Branco, 3336, com a presença do editor das Edições UFC, Luiz Falcão Lordelo. A autora e sua obra serão apresentados pelos professores Maria Cristina de Melo Marin e Fábio Henrique Souza.Brasileiros nos Estados Unidos é considerado um livro inovador, especificamente por ser um dos raros trabalhos produzidos por brasileiros que estudam outros países.
No livro, Bernadete apresenta um estudo original da imigração brasileira nos Estados Unidos, trazendo à lume conexões entre os fluxos migratórios e a expansão imperialista americana no Brasil. A partir de pesquisa etnográfica realizada com brasileiros residentes em Los Angeles, ela revela que é o contato direto ou indireto com a cultura americana que cria o sonho, ou melhor, a necessidade de viver nos Estados Unidos.A tese principal do livro, segundo Bernadete, é a de que os brasileiros, assim como outros cidadãos de nacionalidades diversas, migram para os Estados Unidos em conseqüência da aculturação produzida pela expansão do imperialismo americano no Brasil e no mundo. A autora alerta, no entanto, que esta não é uma conseqüência apenas abstrata."
A expansão do imperialismo exige a criação de redes efetivas entre os Estados Unidos e os outros países. No meu livro, eu estudo as redes produzidas pela expansão do adventismo do sétimo dia no Brasil e o fluxo migratório para os Estados Unidos decorrentes disto", acrescenta.Outro fator muito importante explorado pela autora diz respeito à instituição do casamento de americanos com brasileiras, o que ela chama de "imperialismo científico", caso daqueles, como ela mesma, que vão buscar qualificação e, finalmente, o caso de Hollywood, provavelmente um dos mais efetivos no sentido de difusão do American way of life.
"A minha tese, portanto, afirma que é o contato direto ou indireto com a cultura americana que cria o sonho ou a necessidade de migração e não apenas a crise econômica brasileira ou necessidades exclusivamente econômicas do imigrante", completa.O fato preponderante que levou Bernadete a se interessar pela questão da emigração de brasileiros para os Estados Unidos foi a sua própria experiência de estudante de doutorado que a levou a indagar sobre as dificuldades gerais da integração imigrante brasileira naquele país. "No início é um sofrimento muito grande, a exemplo da língua que não dominamos, e mil outros aspectos de um modo de vida diferente do nosso que precisamos aprender. A atração/rejeição inicial é muito grande. Então, tudo isto era tema de conversa constante na minha família e entre amigos do Brasil e de outros países", esclarece.
Bernadete revela que foi relativamente fácil eliminar os rigores do texto acadêmico para tornar o livro acessível ao público leigo, pois, em geral, escreve com facilidade. Ela está acostumada ao público de jornais porque escreve crônicas ou ensaios políticos eventuais para o jornal O Povo e outros periódicos. "É possível que aqui e ali o leitor leigo tenha alguma dificuldade. Por exemplo, quando explico a economia política da migração e integração imigrante no mundo de hoje. Mas já tenho vários exemplos de pessoas que não têm nada a ver com a área e que leram e entenderam tudo muito bem", diz.
Outro artifício narrativo utilizado por Bernadete para tornar atrativa a leitura de Brasileiros nos Estados Unidos pelo público menos familiarizado com o texto acadêmico foi excluir as partes que ela considera "mais chatas" de demonstração de algumas teorias que propõe e desenvolve ao longo de sua tese. "Trata-se de material obrigatório numa tese de doutorado - prossegue -, mas completamente desnecessário para um livro que eu pretendia que circulasse com uma amplitude maior e que ajudasse a divulgar uma perspectiva menos de senso comum sobre o assunto".
Artigos e ensaios de estudiosos da migração em massa para os Estados Unidos dão conta de que o empresariado estadunidense apóia a imigração ilegal, pois, assim, teria acesso à uma mão-de-obra mais barata. Na contramão desse pensamento, Bernadete diz que o empresariado americano - carente do tipo de mão-de-obra ofertada pelo imigrante - se submete a conviver e lançar mão da mão-de-obra de trabalhadores "ilegais" porque não há um programa ou lei de imigração que permita que entre trabalhadores no país na quantidade demandada pelo mercado de trabalho. "Só neste sentido eles a apóiam", destaca.
Bernadete diz que há muitas formas de entrar nos Estados Unidos sem documentos, como a novela "América" (exibida pela Rede Globo) mostrou: através dos coyotes e cruzando o deserto e o Rio Grande (que separa o México dos Estados Unidos) ou dos balseiros via Caribe."Mas, entre os brasileiros que estudei, o mais comum era entrar com visto e continuar lá depois do visto expirado. Um caso interessante é o dos descendentes de italianos que têm direito à cidadania italiana e entram nos Estados Unidos com passaporte da comunidade européia", comenta.
As dificuldades enfrentadas pelos sul-americanos para encontrar aceitação social no novo país, na opinião da antropóloga, são imensas. Ela ressalta que a sociedade industrial, capitalista, urbana, dos Estados Unidos, da França ou do Brasil, desenvolveu forte preconceito por tudo que não é urbano, rico e moderno. "Assim, há um preconceito geral, tanto lá quanto aqui, contra tudo que é pobre, subdesenvolvido e atrasado. E é assim que tanto o Brasil quanto toda a América Latina são classificados. É o caso da visão do Nordeste pelo Sudeste aqui, no Brasil", compara.
De um ponto de vista predominante, Bernadete diz que os brasileiros sãos vistos como inferiores, inclusive pelo fato de também serem mestiços, uma vez que a ideologia racial dominante nos Estados Unidos, apesar de todo um trabalho desenvolvido por organizações não-governamentais em nível mundial, é a da pureza racial, fato que, na análise da autora de Brasileiros nos Estados Unidos, se contrapõe à excessiva valorização da raça branca, de origem anglo-saxônica."Então, em geral, comparo o preconceito contra o latino nos Estados Unidos com o exercido contra nordestino no Brasil. É semelhante", enfatiza.
Enfrentar questões como a enorme saudade que os imigrantes sentem do Brasil, agravada pelo rompimento das relações familiares e de amizade e pelas conseqüências do profundo choque cultural, na opinião da antropóloga, depende muito da classe social de que são oriundos aqui no Brasil e de como se integram às esferas sociais dos Estados Unidos. Ela explica que alguns brasileiros, principalmente os mais pobres, sonham a vida inteira em voltar para o Brasil, mas não o Brasil real, que eles deixaram, mas um Brasil fictício que eles constróem para sobreviverem.
No caso particular de Bernadete, a maior dificuldade foi sobreviver sem falar fluentemente o inglês, no início. Ela lembra que sofria demais por não poder se expressar com a mesma fluência com que se expressa na língua materna. O forte senso de individualidade e privacidade do americano também a assustou. "Sentimo-nos rejeitados, até entendermos que é assim que eles funcionam. Senti falta do contato que temos aqui, onde falamos com o outro tocando. Da nossa paquera cotidiana também. Depois vamos descobrindo as várias formas como eles também paqueram e como demonstram as suas emoções", confessa.
Morar nos Estados Unidos foi uma das experiências mais radicais que Bernadete experimentou, embora tenha adorado ter aprendido a sobreviver numa cultura tão diferente. E não apenas pelo idioma, como também pela cultura protestante-calvinista que, segundo ela, ensina a assumir responsabilidade pelo que se faz e não transferir toda a responsabilidade para Deus ou para os governantes. "Descobri que há aspectos da cultura americana, como a pontualidade e a ética do trabalho, que prefiro à impontualidade brasileira e ao desrespeito e exploração selvagem do trabalho no Brasil", conclui.
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